sábado, 18 de junho de 2011

MEU DIA DE SORTE

Como em qualquer dia de sorte comum, o cidadão deve levantar com o pé direito. E foi justamente com este que me apoiei ao sair da cama, embora tivesse calculado mal e pisado em cheio no "reservado descartável".
Tropecei e fui obrigado a "mijogar" totalmente para cima da mesa da cabeceira, que ficou mais cabeceira ainda com a tremenda cabeçada que lhe dei.
Nada disso alterou o meu humor matinal e, por isso mesmo, fui, sorridente, barbear-me. Alguns cortes de G-I! depois, arrumei-me e tomei meu café tranqüilo, desta vez sem torradas, pois as duas únicas que haviam, caíram juntas, após várias evoluções no ar, com a manteiga para baixo, é claro.
Um beijinho fiel na esposa e uns tapinhas no bumbum das crianças e lá fui eu feliz para a labuta.
Logo, logo veio o meu õnibus, mas passou por fora e foi embora. Veio o segundo e não parou.
Resolvi comprar um jornalzinho e passou o terceiro. Como a empresa só possui três ônibus, senti que iria me atrasar um pouco, pois teria que aguardar a volta do primeiro. A linha era JACARÉ-PENHA, via Lagoa.
Cheio de paciência e otimismo, eis que surge, altivo e faceiro, o tão aguardado coletivo.
Entramos todos juntos e partimos. Sim, "entramos" eu e mais 284 pacientes passageiros num dos mais ousados desafios científicos de todos os tempos -
"Dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo" - imaginem 284 corpos!!!
Tudo em paz e lá fui eu procurar um lugar para sentar. Otimismo é meu lema.
O que vejo? Dois lugares vazios. Incrível, fantástico, extraordinário. Pura ilusão, sonhos de uma noite de verão, pobre com um prato cheio de feijão. Num dos lugares não havia banco, no outro, um casal de baratas cascudas de pernas cruzadas (todas as seis) calmamente viajavam, sem fichinha.
Apesar das ameaças de agressão das sandálias havaianas do trocador, o casal de "antenienses" (vem de antenas) continuava ali impunemente.
Culminando o meu dia de sorte, como não poderia deixar de ser, o ônibus atropelou um majestoso poste da Light. Enquanto o motorista discutia vorazmente com o poste, resolvi saltar pela janela, que nesta ocasião era a única coisa que ainda abria no ônibus, e apear 3 km até o trabalho.

Entretanto, o bom espírito carioca cochichou no meu ouvido: você não vai anotar o número da placa para fazer uma fezinha?

Sorriso de esperança nos lábios, escrevi no maço do meu Mistura Fina, o número da placa: 9999.

Proibidamente joguei mil pratas no "bicho". Deu 6666 na "cabeça" e a minha doeu ao saber que a placa havia virado com a cacetada no poste. E eu tomei
uma cacetada no bolso.

Bem, após todos esses casos típicos de falta de sorte (detesto a palavra "azar"), aconteceu o grande momento do meu dia de sorte: o prédio em que trabalho estava em chamas e todos estavam liberados.

Que sorte, que alegria, pude ir à praia descansar, sonhar, me bronzear, nadar, enfim, curtir e gravar para sempre na memória meu dia de prêmio.
Gostaria de continuar descrevendo ainda mais sobre a minha alegria nesse dia, mas já são 22 horas e o pessoal aqui do Hospital de Recuperação de Afogados está me obrigando a apagar a luz.
Que Sorte!!!

Nelson Portugal
@Nerdanderthal

sábado, 4 de junho de 2011

A PONTE DO CRIVALDO


Paraibinha de baixa estatura, Crivaldo veio para o Rio de Janeiro em 67, tentar a sorte (ou o azar).
Crivaldo era filho de D.Cristina com seu Leovaldo Miranda, daí o nome; sua irmã mais velha chamava-se Leotina. Filho de mãe solteira e pai casado, Crivaldo tinha, ainda, mais 26 irmãos. Seu Leovaldo era um homem sadio, é claro, e não era à toa que essa família era conhecida na pacata cidade de Cajazeiras por "família Orgasrniranda".

De dez em dez meses Dona Cristina dava luz. Seu poder energético fazia inveja aos grandes homens da Light.
Batismo das crianças e vacinação eram feitas por lotes. Dona Cristina separava um grupo, punha na carroça e partia para o centro da cidade.

Crivaldo, o mais velho dos homens, era o que trabalhava para o sustento da "Mírandada" (coletivo de Miranda).
"Salariominimamente" falando, nosso paraibinha cansou da labuta na lavoura e resolveu encarar as grandes metrópoles:

- Gente, vou viajar pro Rio, passar lá uns cinco anos, ganhar um "burro" de dinheiro e voltar aqui pra buscar vocês. Até!

Pendurado num "pau-de-arara", Crivaldo "posou" seis dias depois no campo de São Cristóvão. Perambulou pelas redondezas alguns dias e achou, enfim, serviço.

Por causa de sua estrutura física, Crivaldo foi escolhido dentre os demais alvinegros (todo paraíba é torcedor do botafogo!?) para a obra da ponte Rio-Niterói.

A grandeza da obra e a certeza de, pelo menos, uns cinco anos de serviço, estimulavam Crivaldo a tal ponto, que ele veio a ser um dos líderes do grupo. Era o mais alegre, o mais empolgado, o mais falante (trezentas e cinquenta e oito palavras por minuto, batendo o recorde, até então, pertencente à IBM).  

Já tinha uma palafita com varanda no pântano do Fundão, relógio Seiko, rádio de pilha, duas calças quadriculadas, três camisas (compradas na Impecável Maré-Mansa), em suma, tudo o que era necessário para o bom-viver de um nor-
destino bem sucedido.

Lá se foram três anos de obra e Crivaldo resolveu enviar uma carta à farnília:

"Guanabara, 8 de maio de 1970
Mãe e pai. Bença.
Tô trabalhando que nem uma besta numa ponte que vai atravessar o mar.
A ponte tem cada curva enorme lembra até o corpo de Rosinha, minha namoradinha aqui do Rio.
Pilares grossos e bem feitos - lembra até as pernas da Rosinha.
Tem um vão central enorme - também lembra a Rosinha. 
Quando a obra da ponte acabar, ficarei orgulhoso e direi a todo mundo:
- Eu estou presente nessa ponte,com meu corpo e minha alma!
Agora eu me despeço.
Vinte e nove beijos
Crivaldo ".

Essa foi a primeira e última vez que os Mirandas receberam notícias de Crivaldo.

Passaram-se. treze anos, a criançada cresceu, muitos vieram para o Rio. 
Seu Leovaldo já morreu e até agora não se encontrou notícias do "paraíbinha" .
Um de seus irmãos, o Leozinho, o mais inteligente, hoje é encarregado de obra, mora em Niterói e todos os dias, ao atravessar a baía de barca, comenta, com orgulho, com o passageiro do lado:

- "Vê aquela ponte? Pois saiba que meu irmão trabalhou nela. 
Ele está ali, presente com seu corpo e sua alma!"

As palavras de Leozinho ecoam pelos ares como lamúrias à procura do perdido irmão, mas são ouvidas, lá em cima, por Deus, a única testemunha que sabe o quanto são verdadeiras estas frases.

Crivaldo morreu concretado em um dos grandes pilares da ponte, o quinto da esquerda de quem vem de Niterói; o mais parecido com as pernas da Rosínha.


Nelson Portugal
(Esse conto foi editado em 1972 na Revista Tema do SERPRO)